A vida ao lar livre e a liberdade, com responsabilidade pelas consequências de seus atos, era bem diferente na minha infância. Jogar futebol, brincar pelas matas e pelos rios, caçar, pescar, escalar o Botucaraí, construir os próprios brinquedos, faziam parte da nossa formação.
Qualquer criança da vizinhança, bem informada, sabia que jundiás pegava-se no Poço do Sona Rehbein, na Benjamin Constant, principalmente em dia de chuva. Perna de moça – uma espécie de enguia muito rara – só dava no Poço do meu avô Leopoldo Jensen. Lambaris era na Curva onde meu pai matou a cobra ou no Pocinho da Dona Dulce – onde se buscava água em épocas de seca. Também na Ponte do Padre Sem Cabeça, que aparecia todos os dias na Ponte dos Rathke, pontualmente às 11h30min, quando batia o sino da igreja. Certa vez eu e um outro corajoso superamos o terror e ficamos lá na hora fatídica, mas nada aconteceu.
Qualquer guri sabia a época e onde ficavam os pés de sete capote, araticum, uva-de-pau, pitinga, pitanga, goiabas, araçás, pinhão, veludinho, pixirica branca e preta e até fruta de pula-pula. A maioria já nem conhece mais. Se não havia outra coisa, mastigava-se cana-de-açúcar, trigo ou até boneca de milho, que é bem doce e macia.
Os tios tinham grande influência e conviviam muito com os sobrinhos. Eu e meus irmãos éramos simplesmente “os guris” e não havia feriado que a trinca não saía com o pai, ou um dos tios, especialmente para pescar, passatempo muito apreciado.
Construir canoas e até jangada de troncos de bananeiras era apenas uma das perigosas brincadeiras, sendo meu irmão mais velho o engenheiro construtor – futuro engenheiro de voo do Boeing da Varig, com o mais novo como Comandante – foram longe esses guris!
Já adulto, sempre mantive o passatempo de desligar-me dos problemas, pescando com meu pai e tios, chegando a ir de ônibus e caminhando quilômetros a pé acompanhados de um parceiro idoso carinhosamente chamado de “velho nenê”.
Segundo os psicólogos o cérebro do homem é diferente das mulheres, que muitas vezes não compreendem que é dividido em caixas, sendo capaz de apenas um assunto de cada vez. Necessita de vez em quando ingressar na “caixa do nada”, não se entediando em ficar horas a fio aguardando a mordida de um peixe, apenas sentindo a brisa no rosto e olhando as estrelas.
Deus não desconta da vida do homem o tempo que ele passa pescando.
Meu pai era pescador e, como oficial de justiça, sempre acabava viciando o novo Juiz na arte da pescaria em açudes da região, sujeitando-se a enfrentar os mosquitos com uma boa prosa e um bom churrasco assado ao ar livre.
Existem regras de pescaria que são primordiais e que precisam ser repassadas aos novatos para que não cometam alguma heresia.
Primeiro, é preciso conseguir iscas, tarefa que já começa após o meio dia e que deve ser assumida por todos na pesca de lambaris, essenciais para a pesca noturna. As traíras começam a caçar ao entardecer.
Segundo, NUNCA, se mexe nos anzóis de outro pescador. O máximo que se pode fazer é avisá-lo que ouviu um barulho ou viu uma linha que parecia ter sido puxada, mas JAMAIS pegar o seu peixe.
A pescaria ensina uma série de regras de convivência. Por exemplo, no final os peixes são divididos entre todos e o mais velho faz os montes. Quem divide não escolhe, fica com o monte que sobrar. Se há um peixe que não tem medida, ou seja, não há nenhum outro que se iguale em tamanho para entrar na divisão, este é entregue ao DONO DO CARRO que levou os pescadores.
O companheirismo é permanente entre os parceiros, todos ajudando nas tarefas e só se admitindo piadas e boas histórias. Aliás, apesar de dizerem que todo o pescador é mentiroso, posso garantir que a maior parte das histórias são mesmo verdadeiras.
A solidariedade entre os pescadores é marca essencial. Ninguém deixa mal um parceiro, ou mesmo concorrente, sem sal, sem fósforo, sem isca ou qualquer outro apetrecho que tenha perdido. Todos se ajudam.
A humildade é outro ensinamento. Todos os homens são iguais perante os peixes. A pior linha pega o maior peixe. A linha de mão do operário, formada de pedaços, supera a carretilha de última geração do gerente do Banco. Aliás, o peixe parece ter suas próprias regras e sempre vai pegar a isca da linha mais fraca. E acreditem ou não, o novo pescador, na sua primeira vez, SEMPRE PEGA O PEIXE MAIOR. E daí está fisgado. Acho que fazem isso para sempre ter alguém que vai voltar e alimentá-los com as iscas…
O otimismo é uma qualidade fundamental do pescador. Não pegamos peixe porque estava muito quente/muito frio; muito vento/pouco vento; cedo ainda/passou da hora; a lua não está boa… A certeza de que na próxima pescaria terá mais sorte.
O bom pescador não mata peixe que está chocando na beira e solta os peixes menores para que que se desenvolvam e procriem.
Deve haver uma razão divina para Cristo ter escolhido seus apóstolos entre os pescadores e o símbolo do papado ser o Anel do Pescador.
Aos inexperientes se ensina a técnica de iscar, jogar e enrolar a linha para que não se enrosquem. Numa dessas meu pai atirou três ou quatro linhas – mostrando ao novo Juiz a técnica de rodear e jogar a linha com o anzol e chumbada, prendendo-a numa estaca – e foi para outro pesqueiro no lado contrário do açude.
Quando voltou ao acampamento foi motivo de grande gozação dos seus parceiros, de que teria feito uma sacanagem ao ensinar o ilustre magistrado, pescador de primeiro viagem, que, acostumado a pescar com rede no mar, a cada vez que puxava a linha, entrava no açude com água até a cintura para recolocar o anzol no lugar.
E não é história de pescador!
Moacir Leopoldo Haeser