Histórias de Juiz – O Juiz Caloteiro

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Na década de 1970, em pleno regime militar, fui substituir uma cidade vizinha do interior que estava sem juiz. Como é usual nesses casos, o Juiz vai até lá um dia por semana e despacha o expediente, evitando que os processos fiquem parados. Também atende os atos urgentes, tais como liminares de medidas cautelares, prisões e audiências de réus presos, bem como atende as partes e advogados.

O País havia passado por um período conturbado. Houve guerrilhas, sequestros e atentados, vice-presidente havia sido impedido de assumir, outorga de uma nova Constituição por uma Junta Militar, cassações de mandato e de direitos políticos, aposentadoria compulsória de Ministros do STF e funcionários, bem como banimento de pessoas. Ocorria censura de peças teatrais e programas da incipiente TV. Ainda perduravam os efeitos dos atos institucionais e a vida política estava engessada em dois partidos.

Lembro que no Banco onde trabalhara anteriormente, havia um folheto oficial no mural, incentivando as pessoas escutar, em caso de linha telefônica cruzada, e denunciar qualquer conversa ou atividade subversiva. Para me inscrever no concurso para Juiz tive que obter na Auditoria Militar de Santa Maria um “atestado ideológico”.

Não entro no mérito, apenas retrato o ambiente da época. Estávamos em plena guerra fria, a “Operação Condor” tentava barrar o avanço das esquerdas, que se articulavam no Cone Sul, e atuava o Serviço Nacional de Informações (SNI) na repressão. Logo ocorreu o caso do “Sequestro dos Uruguaios”, episódio que acompanhei de muito perto e falarei numa próxima crônica.

Na disputa entre Estados Unidos e Rússia, e suas esferas de influência no mundo, sempre entendi que cabia a nós, como brasileiros, lutar pela liberdade e pelo Brasil, tornando-o grande, livre e forte.

Nesse ambiente de certa insegurança e suspeita dirigi-me à comarca vizinha para fazer o atendimento e despachar as questões urgentes, inclusive fazer a preparação das sessões do Tribunal do Júri, realizando o sorteio dos jurados que deveriam atuar.

Quando entrei no Fórum encontrei-o em polvorosa. Logo senti o ambiente elétrico e os olhos arregalados de pavor dos funcionários. Havia uma carta, dirigida ao Juiz, originário do Ministério da Justiça! Esse nome, naquele período, era capaz de infundir medo até a quem nada devia.

Mandei deixar a carta no canto da mesa, que olharia depois, e comecei a despachar o expediente calmamente. Ouvia passos no corredor e algum olhar furtivo para ver se eu já a havia aberto.

Despachado todo o expediente que me aguardava, finalmente abri a malfadada carta do Ministério da Justiça. Esta exigia explicações do Juiz, em razão da queixa de um cidadão. Este dizia que o Juiz vendeu a ele uma área de terras e, embora a tenha pago e recebido o documento de propriedade, não a recebeu, pois o mesmo Juiz concedeu-a a outra pessoa.

A situação era mesmo inusitada e pedi para o escrivão desarquivar os processos para que eu pudesse examiná-los.

De fato, num inventário, o inventariante pediu que o juiz autorizasse o leilão de uma área de terras do espólio para custear as despesas e honorários do advogado. O juiz autorizou e a área foi arrematada pelo cidadão.

Tempos depois ingressou uma Ação de Usucapião daquela área comprovando que estava na posse do autor há muito tempo, com ânimo de dono.

O arrematante contestou, mas o mesmo juiz julgou procedente a ação e mandou registrar a propriedade em nome do possuidor.

Tudo absolutamente correto e, embora a curiosa situação, pareceu óbvio que o inventariante elegeu aquela área para leilão justamente porque já tinham perdido a propriedade para o possuidor. Aliás, como advogado já fui consultado para situação semelhante ocorrida recentemente.

Mandei enviar copias de partes do processo, colocando-o à disposição para exame por advogado do autor, que deveria ser por ele constituído para providencias legais, em vez de ir inutilmente queixar-se ao Ministro.

Moacir Leopoldo Haeser

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