Os efeitos psicológicos deixados pela enchente

Eventos climáticos extremos, como a enchente de 2024, podem trazer danos muito além da perda de materiais

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Rosemeri Costa, atingida pela enchente de 2024, teve sua saúde mental abalada pelo trauma Foto: Douglas Roehrs / JC

A cuidadora de idosos Rosemeri da Luz Costa, 29 anos, ainda lembra com nitidez da água subindo rapidamente enquanto ela e o marido, o calçadista Mariel Scher, 27, tentavam, em vão, erguer os móveis. Quando foram resgatados pelos Bombeiros, na casa alugada na Rua da Praia, a água já atingia a altura dos ombros de Rosemeri. O episódio desesperador ocorreu durante a grande enchente de 2024.

“A gente perdeu tudo, praticamente. Não sobrou nada. Recebemos pouca ajuda”, desabafa Rosemeri. Nos dias seguintes, chorava com frequência, mas, como já fazia uso de antidepressivos, conseguiu manter a calma.

Na semana passada, com um novo episódio de chuvas intensas, mesmo vivendo atualmente em outro ponto da cidade, longe do rio, Rosemeri reviveu o medo. “É um trauma. A gente começa a pensar naquilo tudo de novo”, conta ela, que diz ter desenvolvido pânico com o som da sirene dos Bombeiros.

Segundo a psicóloga Tyele Goulart Peres dos Santos, doutora em Ciências da Saúde com foco em luto, resiliência e saúde mental em emergências e desastres, eventos extremos rompem com a rotina e provocam reações emocionais naturais. “Podemos nos sentir mais angustiados, preocupados, tristes, com raiva e até ter impactos físicos, como insônia ou problemas gastrointestinais”, explica a especialista, que é pesquisadora do projeto “Perdas, lutos e apoio social no desastre de 2024 no Rio Grande do Sul”.

Ela ressalta que a maioria das pessoas não desenvolve traumas duradouros, adaptando-se ao novo cenário com o tempo. No entanto, algumas se tornam mais vulneráveis e precisam de atenção especializada.

PIRÂMIDE DE SUPORTE

Eventos extremos ocasionam muitas perdas, desde materiais como móveis, casas, templos religiosos, escolas e posto de saúde, como a de entes queridos e animais de estimação. “A gente associa o luto a múltiplas perdas, não precisa ser necessariamente a morte de uma pessoa ou animal de estimação. Uma perda da casa pode desencadear um processo de luto. O luto é quando a gente perde algo que tem um vínculo muito significativo pra gente”, explica Tyele.

No caso de uma pessoa não estar lidando bem com a situação vivida, há uma pirâmide de cuidados para auxiliar o indivíduo durante o processo de perdas e lutos, material que consta na série “Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Emergências e Desastres”, desenvolvida pelo Ministério da Saúde.

Primeiro, busca-se garantir a segurança e integridade física, alimentação, água, acesso a banheiro, roupas, local para dormir, medicação de uso contínuo e a reunificação da família e pessoas de referência. O próximo nível diz respeito a um apoio à comunidade com os primeiros cuidados psicológicos. Após isso, procura-se promover funcionalidade adaptativa e regulação emocional, com mecanismo de enfrentamento. Em último caso, se a pessoa ainda estiver mal, há o encaminhamento para profissionais da saúde mental.

ACOLHIMENTO

“Pensando nesse contexto difícil de evento extremo, a gente vai passar por situações dolorosas. É importante que as pessoas não minimizem o sofrimento do outro, como ‘ah, pelo menos está com saúde e não perdeu ninguém’, mas se tu perdeu tua casa, animal de estimação, alguma coisa importante pra ti, também é uma perda importante”, explica Tyele, que reforça que é necessário acolher as pessoas de forma que elas possam expressar a dor ou não, sem pressão.

“Quando a gente sente algo físico, a gente vai lá e consulta, faz um tratamento porque aquilo está doendo. Na saúde mental também está doendo, mas a pessoa não está enxergando porque não é físico”, pontua a psicóloga, que fala sobre a importância de se procurar ajuda. Ela também enfatiza que novos eventos extremos podem despertar gatilhos. Nesse caso, a pessoa pode reagir se sentindo mal ou tendo uma resposta positiva por já ter lidado anteriormente com situação similar.

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