Uma relação afetiva não existe apenas entre pessoas. Acontece igualmente entre pessoas e coisas materiais. Como a paixão dos homens por seus veículos. Das mais variadas formas, as máquinas acessam a estrada da vida desses seres e ambos protagonizam grandes histórias marcadas por elementos dignos de uma narrativa cinematográfica como ação, aventura, comédia ou até mesmo o drama. Alguns deles fizeram parte da trama automobilística na qual os personagens principais foram um pai, um filho e um simpático Fusca modelo F1300 — cujo ano não há recordação, embora se soubesse que era um exemplar fabricado na década de 1980 — . Apelidado carinhosamente de “Fusqueta”.
O “Fusqueta”, é bom que se diga, não era daquele pai. E sim de seu então chefe, que cedeu-o ao subordinado no decorrer dos anos 1990. Eram tempos financeiramente complicados e não havia aquela verba para uma manutenção íntegra. Assim, não foram feitas grandes intervenções no já reumático meio de transporte. Esse possuía uma pintura amarela judiada pela ação do tempo ou de agressores agentes químicos, uma lataria em processo de ferrugem — quase uma sobrevivente de um campo de batalha — e faróis arredondados e, pasmem, intactos. Características dignas de um carro peculiar. Todavia, a paixão do condutor pelo seu xodó de quatro rodas o fazia graciosamente dizer que “não eram suficientes para se notar”.
Ao longo do primeiro novênio da vida do filho, ele foi transportado incontáveis vezes pelo “Fusqueta”. Isso precisa ser reconhecido. Entretanto, o mar de rosas, repentinamente, perdia seu aroma. Saía o frescor e entrava o odor… Da fumaça do motor! E que cheiro! Quantas vezes os deixou na mão, os fizeste caminhar até a mecânica, ao posto mais próximo ou outro local em que pudesse ser deixado com segurança ! Quantas vezes os forçou empurrar-te até uma ladeira, para lá, na velocidade da emoção, buscar forças para reativar o seu motor.
Como se não bastassem essas episódios, o “Fusqueta” também era traiçoeiro. Em dias de chuva, molhava os pés dos ocupantes com seus furos minúsculos e poderosos localizados debaixo dos bancos e nos cantos das portas. A generosidade do veículo era comovente. Além das pessoas, volta e meia alguns insetos passeavam. Afinal, não se podia negar abrigo, por exemplo, para uma linda e asquerosa aranha marrom… Novamente, aquele pai defendia o carro. Com suas “célebres justificativas”: “Tu deves ter pisado numa poça d’água antes de entrar”. “Aranha? No meu fusca? Negativo! Você só pode ter se confundido”!
Em meados de 2000, esse adorável meio de transporte sofreu um duro golpe na sua “coluna vertebral”. Outro veículo atingiu-o em cheio na lateral. Quer dizer, lataria. A partir daí, os insucessos das cirurgias feitas nos “hospitais mecânicos” provocaram dores cada vez mais agudas e o surgimento de cicatrizes e notáveis hematomas O banco traseiro se soltou, manchas se multiplicaram e componentes do motor expuseram toda a fragilidade. Mesmo aos trancos (literalmente) e barrancos, o “Fusqueta” ainda cruzava a cidade de norte a sul, de leste a oeste.
No segundo semestre de 2003, a intensa história do “Fusqueta” com aquela família deixou de lado a comédia e ganhou marcante contorno dramático. O pai teria de devolvê-lo para o seu chefe, o verdadeiro dono, como dito no começo dessa redação. Numa quarta-feira chuvosa, a chave — que tinha propaganda de uma conhecida rede de postos de gasolina — foi entregue na bagunçada sala do superior. Naquele dia, em casa, com a família, foi limitadíssimo nas palavras. O funcionário ficou visivelmente abalado.
O clímax da situação ocorreu algum tempo depois. Ainda desacostumado com a ausência do “Fusqueta”, aquele pai foi surpreendido, pouco depois de chegar ao serviço, com a notícia de sua destruição. O veículo não tinha mais importância para o seu proprietário e foi enviado ao corredor da morte ( nesse caso conhecido também como ferro velho), onde tragicamente virou um entulho sem identidade. Mais tarde, de volta ao seu teto, aquele homem abaixou a cabeça e deixou as lágrimas sinceras escorrerem pelo rosto e atingirem o chão como se fossem vidros estilhaçados. Uma bomba fora detonada, é verdade, mas a memória tratou de amenizar o impacto.
Por toda a sua representatividade, o “Fusqueta” ficou eternizado em algum lugar da mente. E hoje? Jaz por aí! Em pedaços ou inserido em algum produto reciclado…
Até semana que vem, adorável leitor!